31.10.08

Minha primeira morte


Nesses dias por aí, depois do trabalho, estava assistindo “Todo mundo odeia o Cris”, um seriado genial que passa na Record geralmente no meu horário de almoço. Gosto por alguns motivos, como me lembrar pessoas. E a discussão é boa: é um seriado cujos protagonistas são pobres ou, sendo mais bonitinho, classe média baixa. A questão é que ser classe média baixa nos Estados Unidos da década de 80 é muito parecido em diversas instâncias com o ser classe média média no Brasil. Os perrengues, a luta da classe média para não ser quem ela é: o limbo social que quer consumir a aparência como um rico, nem que para isso tenha que aumentar as outras privações de pobre. A típica gente besta que gasta com cabeleireiro e roupas nem que para isso passe o resto do mês contando moeda. Ou pior, endividada pelas próximas encaranações a ponto de quando terminar de pagar tudo, o cabelo já estar uma merda de novo e a roupa já estragada ou fora de moda, o que dá no mesmo. Enfim, foi mais ou menos com isso que eu sempre convivi. A tal da medíocre classe média renner – chapinha. Mas o presidente diz que esse é o caminho...

Hoje em especial, fiquei meio nostálgica com um episódio: O avô do Cris morreu jantando na frente dele. Sofreu um enfarto e caiu de cara no prato. Lembrei do meu avô porque ele também morreu jantando na nossa frente. Na hora (como o Cris) não entendi o que estava acontecendo, mas lembro de tudo: Ele caído e seu prato espatifado porque estava na mão. Tínhamos a mania detestável (segundo minha vó) de jantar com o prato na mão, na sala vendo jornal com o meu vô. Depois disso levaram a gente para a casa do vizinho e enquanto eu via um monte de gente chegando em casa, o vizinho fritava umas coxinhas e nós assistíamos “O rapto do menino dourado”, que na época ainda era um filme novo. Não lembro de como me contaram que meu vô não voltaria do hospital, mas lembro de ter visto ele no caixão, no meio da mesma sala da qual ele saiu carregado algumas horas antes e de ter ficado desesperada. Se ele não voltasse, ninguém mais contaria histórias (todas terrivelmente moralizantes, mas isso eu não sabia na época e achava tudo importante) pela manhã quando estávamos na cama esperando minha vó chamar para o café. Além disso, tinha muito arroz, milho e feijão plantado e ele precisava colher. E a horta? Quem iria regar a horta e tirar os matinhos todo dia? E tem outra, a gente ia caçar e aprender a fazer tapera de sape, ele já tinha prometido. Não me conformava: eu achava que ninguém podia morrer se tivesse prometido algo para alguém e não tivesse cumprido.

Minha vó e minha mãe cuidaram de fazer tudo que ele tinha deixado por fazer. Mas nos quase 20 anos que se passaram desde que ele morreu, ninguém nunca mais prometeu me levar para caçar e dormir no mato. E eu sei que foi depois que ele morreu que tudo desandou na minha vida.
O vô Juvêncio era meio pai assim como a vó Maria era meio mãe de todas nós. Meu pai era muito distante, muito ocupado em ser classe média. Além disso era chucro mesmo, não sabia que ser pai era algo mais do que ser provedor e repressão. Meu avô também não sabia ser muito carinhoso quando era pai da minha mãe. Mas a idade amolece as pessoas, deixa todo mundo mais maleável. E ele não era meu pai, era meu avô a figura masculina mais carinhosa e certa da minha vida. Eu adorava quando as pessoas falavam que eu me parecia com ele: meio moleque e que vivia pelos matos. Lembro dele como seu Juvêncio do bar, como seu Juvêncio caçador, como seu Juvêncio encarregado de fábrica porque tinha aprendido a ler e escrever praticamente sozinho. Lembro dele voltando do mato com um passarinho morto debaixo do braço dizendo que era para mim. Eu era pequena e chamava o passarinho morto de carninha branca: era carne de nhambú, muito mais branca que carne de frango. Ele chegava contente e eu ficava esperando a vó limpar o bicho e fritar.

Meu vô aprendeu a ser carinhoso sendo vô. Ele era um homem rústico, mateiro, que virou operário por acaso e depois dono de bar.E quando penso nele, naquele ogrão branquelo e vermelho de sol voltando do mato com um passarinho para a neta “pretinha” como ele me chamava, penso que meu pai também vai ser um avô legal. Ele só precisa aprender e disso talvez o tempo se encarregue.

4 comentários:

acauã:pássaro disse...

Caralho.. que texto bonito... lembrei da minha vó, e lembrei também que nunca passei pela experiência da morte assim... ce tem o dom da palavra sensível hein mina...
Bjs

Bia disse...

Lindo texto...
Delícia pensar nos velhihos doces que nos cercam...

beijão

Flor que Não Existe disse...

bonito texto que pega na recordação de cada um...

beijo catchola!

Anônimo disse...

Nossa Cassia, do caralho, por sua culpa estou num estado nostalgico e muito, mas muito melancólico. Obrigado! rs
Te amo!. Tenho muitas saudades, mas parece que a cidadona te engoliu moça. Chego ai em breve para ser engolido junto a você. Será?
B.