30.6.08

Sonetos que não são


Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha.)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel

Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.

E sendo água, amor, querer ser terra.

- Hilda Hilst -

20.6.08

Ai, o Carvana...

"Neste sentido, o “New Labour” e todos os seus imitadores demonstram-se, em todo o mundo, compatíveis inteiramente com o modelo neoliberal de seleção social. Pela simulação de “ocupação” e pelo fingimento de um futuro positivo da sociedade do trabalho, cria-se a legitimação moral para tratar de uma maneira mais dura os desempregados e os recusadores de trabalho. Ao mesmo tempo, a coerção estatal de trabalho, as subvenções salariais e os trabalhos assim chamados “cívicos e honoríficos” reduzem cada vez mais os custos de trabalho. Desta maneira, incentiva-se maciçamente o setor canceroso de salários baixos e trabalhos miseráveis."
Manifesto contra o trabalho

12.6.08

O aniversário da foca

Tenho lembrado muito de uma pessoa que fez parte da minha vida por muito tempo. Dias atrás, no meio da madruga, chegou um recadinho dele dizendo apenas "saudades". Engraçada essas sintonias, mas sempre acho que podemos explicá-las, em parte, pela memória compartilhada. No mês passado, nos encontramos e lembramos que faziam 11 anos que havíamos nos conhecido.
Hoje fiquei pensando em como eu gostava (ou ainda gosto) dos rituais comuns. Não toda a pieguice comercial do dia dos namorados C&A. Mas o carinho, a lembrança, os marcos de passagem e datas comemorativas. Os casais criam um mundo próprio, em que determinadas coisas passam a fazer sentido, e é claro, apenas porque é em função da outra pessoa. Não cabe em outro espaço, nem em outra relação.
Lembrei da minha foca de pelúcia. Exatamente 11 anos atrás, relacionamento começando, aquela insegurança típica de quem começa a se perceber apaixonado, sem saber muito bem o que esperar do outro. Ele então, o outro, me aparece com uma foca de presente de dias dos namorados. Dizia que ela era careca e com um fiozinhos de barba que nem ele. Era um bichinho para que eu me lembrasse sempre dele.
A partir disso e é claro que apenas por um tempo (intenso, longo, mas um tempo) firmamos um companheirismo maravilhoso. Ele é músico, a gente curtia ir em pagodes, sertanejos, karaoke, rock, o que rolasse. Enchiamos a cara juntos. Ele passou a fazer parte do meu grupo de amigos, do meu grupo de teatro. Ajudava no que desse fazendo cenário, dando pitaco em música, luz...
Eu assistia aos ensaios da banda dele. Ouvia suas composições, falava o que achava e ele ouvia. Juntamos por vezes as duas galeras, os meus e os deles, a ponto de quase sair mais um casal.
Todo ano, eu olhava para a foca e lembrava que o aniversário dela, era mais um ano que eu passava com ele.
Mais um ano de cantoria, de brigas, de amor, de conversas sobre o mundo e sobre a gente.De inventação de rituais. Nossos rituais. Mais um ano que ele me chamava de "leãozinho" (por que será hein?) e cantava para me acordar: "Gosto muito de te ver leãozinho, caminhando sob o sol..."
No primeiro aniversário da foca, sem o aniversário de namoro, eu achei que ia morrer. Mesmo. De verdade.
Nessa lógica de "mundo do casal", com o tempo a gente começa a sacar até a intenção das palavras. Às vezes eu perguntava, por conta de alguma estranheza: O que foi? E ele respondia: Nada não.
Era mentira. Tinha alguma coisa sim, e não falhava. Se a resposta era somente um "nada", aí sim podia ser encanação.
Tanto era verdade, que tempos depois, já na crise, ele fez um música. Me surpreendi de manhã descobrindo que ainda sei o final dela.
"Nao te entendo e temos tudo do avesso
de nossa geração.
Passo a passo faço nossa história
se tornar canção
Andamos juntos tão distantes
de nossa geração
Temos defeitos, tenho medo
do meu coração.
-O que foi?
- Nada não.
- O que foi?
-Nada, nada não...."
Hoje em dia ele deve odiar essa música, achar ruim para caramba, com rimas pobres. Mas eu dizia para ele que ia fazer um puta sucesso na indústria de massa para o público adolescente. Que ele ia ficar rico-famoso-drogado, me trocar por uma modelo, ficar mais deprimido e mais drogado e morrer disso.
E eu ia ficar rica leiloando entre patricinhas adolescentes histéricas, o manuscrito original da música.
Ele ria.
Eu ria.
Ele continua músico e meio hippão... Agora me chama de irmãzinha. Vai vendo...
Eu eu continuo aqui. Em tempo difíceis para se falar de amor, é bom ficar lembrando como ele existe.

5.6.08

lendo o mundo pelo rádio

Manhã de café prolongado, ouvindo um pagode, sem falar de nada. Esses pequenos prazeres são inexplicáveis. São aquelas coisas que a gente gosta, e muitas outras pessoas não vêem o menor sentido. Tipo o sujeito que gosta do seu bicho-de-pé, só para poder chegar em casa a tarde e coçá-lo. Vai saber as esquisitices de quatro paredes que existem por aí...

Mas também me impressiona como sou capaz de passar horas ouvindo rádio. A companheira do blog “histérica e feliz” adoraria ser locutora. Eu adoraria ser sua ouvinte. Mandaria recadinhos para o meu amor e tudo...

Mais especificamente, acho a 105 fm um dos jabás mais bem investidos das rádios comerciais. Claro que não tem como não lembrar do filósofo Mano Brow:

“...periferia...corpos vazios e sem ética lotam os pagodes rumo a cadeira elétrica...eu sei vc sabe o que é frustação...máquina de fazer vilão...”

Durante todo o dia, acompanhando as tarefas da rapaziada, em meio a cozinhas alheias, filhos que não são os seus, ou carros nos quais você nunca vai passear, fala-se de amor. O tempo todo. Boa parte das músicas se preocupa em pensar o amor nas suas milhões de formas cotidianas. Uma fala do casal feliz, outra fala de separação, outra fala de traição, de amizade, de saudade, da vontade de amar, de esquecer ou de ficar sozinho, “na pista”.

E as pessoas participam pedindo músicas. E nem sempre o que elas querem ouvir, são as mais pedidas da semana. Geralmente são oferecidas para alguém, e aparece de tudo.

Os cobradores de ônibus disparam na lista dos que mais recebem recadinhos : Antonio da linha Jardim Miriam – Vila Gomes, só você não vê que estou de olho em você.

Meninas, o Lêêêêê lêlêlêlê (só você tem o meu amor) do exaltasamba continua em alta.Encantadora de gatos, Temporal sempre aparece em algum apelo apaixonado, comove até agora.

O bacana também é que a rádio se divide basicamente em duas: O pagode e o rap. O espaço rap é um espaço respeitado. A rapaziada participa, manda abraço para os amigos que estão “do outro lado da muralha”, fala da vida. Muitos desempregados, e para eles o programa anuncia empregos do PAT (posto de amparo ao trabalhador). As vagas de trabalho são aquela coisa. Muito e mal pago.

Para os empregados, como os muitos seguranças privados noturnos, serve de companhia, um cara falando umas coisas legais, um música bacana, as pessoas participando.... e claro, tem transmissões de jogos. Em dia de jogo do Curinthia, como aconteceu ontem, a galera não se aguenta.

E para mim, é como ouvir uma partinha do mundo sem parecer estar nele.


V.L. Também Ama

Trilha Sonora Do Gueto

Composição: Trilha Sonora do Gueto

É vida loka, muito amor, muito amor...
Cê tá ligado, você é o que precisa mais de amor.
O vida loka é o que vai pra guerra
Você vai pra guerra ... você é o vida loka
Então muito amor vida loka, muito amor.

Sexta a tarde, fecha o sinal
A garota para o carro,
Ao lado encosta outro carro,
Ela olha ...
É um vida loka de boné pra trás,
barba por fazer
Ele sorri para ela
Ela sorri para ele
Ele abaixa o vidro elétrico,
E ela também
Ele pede o telefone
Ela dá: 8121-5511 liga pra mim
O sinal abre, os dois partem
Logo que ela chega em casa, o telefone toca
É ele!
Ótimo papo gostam das mesmas coisas
Parece até que se conhecem a um tempão
Ele sugere que se encontrem sábado a tarde no shopping
Ela topa.
Vida loka também ama nego.


Amo de uma forma que não sei explicar
Sou revolução nego, eu vou tentar ... então
Aprendi na vida que os fraco não tem vez
Um dos vida loka vale deles tipo seis
Não vai ficá aí se lamentando se a mina não te quer
doidão, c sai andando.
Deixa ela pensá, que é pá que é modelo, que
a fantasia de princesa dura o tempo inteiro
Hoje ela tem 15 amanhã tem 16,
Passada a temporada ela vai ter 26.
Aí você vai vê nego, quá lé que é que é se ela é a guerreira
pra poder ser sua mulher

Cara é complicado essa vida
Mas aprendendo é que se ensina, ainda existe
boa gente, que vai a luta e segue sempre em frente
Tendo que enfrentar toda manhã e se preocupar com sua família.

Amar é complicado, pros fracos não tem vez
Um dos vida loka vale deles tipo seis
Só tenho que eu mereço, humildade vem do berço
Amor é só de mãe, pois de outro eu não conheço

Cara é complicado essa vida
Mas aprendendo é que se ensina, ainda existe
boa gente, que vai a luta e segue sempre em frente.
Tendo que enfrentar toda manhã e se preocupar com sua família

Amar é complicado né Jão, quem é que não gela
Olha que vem lá Boca é o Zé Ruela
Tá cá mina dele, modelo de favela
Tipo Vera Fish, oh quem ti dera
Acho que o cê só tá só com ela memu
Pq cê num trampa e num paga um veneno.
Eu queria vê se cê fosse operário
Dasse aquele trampo prá ganhá um só salário
Ela ía querer você, bem longe dela
O seu privilégio é ter um golf na favela

Eu não falo nada né Jão, fico na minha
Ele mesmo diz, essa aqui é minha mina
Mais vale um operário sem ela vai por mim
Do que um criminoso tano em cana e sozinho
Não sou mais que ninguém só quero alertar
Um dia eu também nego, passei por lá
Foi lá que eu notei, que o homem também chora
Quando a modelo de favela vai embora,
Ai só fica ele e a decepção pagando de mau mau abandonado na prisão.

Cara é complicado essa vida
Mas aprendendo é que se ensina, ainda existe
boa gente, que vai a luta e segue sempre em frente
Tendo que enfrentar toda manhã e se preocupar com sua família. Com sua família.
Cara é complicado essa vida...
Cara é complicado essa vida...
Mas aprendendo é que se ensina, ainda existe
boa gente, que vai a luta e segue sempre em frente...

Alô ... alô
Me desculpa, eu não queria que tudo acabasse assim
Me dá uma chance,
Fala comigo ...
Alô ... alô ...

As vezes a gente sente e fica pensando que tá amando.
E que encontrou tudo de bom que a vida poderia oferecer.
Até que a mulher que a gente ama vacila e põe tudo a perder...

Cara é complicado essa vida...Essa vida Essa vida....


letras acima