29.5.07

“Vai cuidar da sua vida, diz o dito popular. Quem cuida da vida alheia da sua não pode cuidar.”

Tomando meu café esfumaçado pela manhã fria de segunda-feira, assistindo um dos meus companheiros de vida e moradia se apressar para tomar o ônibus, mesmo ainda faltando uma hora e meia para sua aula começar, me veio pensar sobre o que significa a vida alheia em um lugar tão carente de tudo. Onde os direitos, na prática, são quase nada, o capitalismo é tosco e pouco desenvolvido com mão-de-obra saindo pelo ladrão, o estado é praticamente absolutista para a maioria da população já que parou ainda no âmbito da repressão, e a moral ainda está longe de ser liberalizante. Ou seja, falta muita coisa e sobram tantas outras merdas, como senhoras católicas e fofoqueiras. Nesse espaço, cuidar do outro está muito distante de práticas que visem atender e contemplar dignamente a todos. O bem público, realiza-se como bem privado, no sentido de propriedade. Assim, cuidar do outro se restringe ao campo da moral. Significa zelar para que todos cumpram as leis criadas e impostas para a maioria com o intuito de manter o bem estar da minoria.
Essa minoria, no entanto, na tentativa de justificar a absurdez de sua própria alocação no mundo, se presta a cuidar do outro, quando se presta, seguindo preceitos de um darwismo social arcaico: Nós classes superiores e desenvolvidas, temos que zelar pelos menos evoluídos, principalmente na base moral, porque dessa forma, esses bárbaros chegaram a retidão que precisam para alcançar o progresso material.” E dá-lhe chá de senhores batistas para pensar o próximo evento beneficente. E mais um Rotary Club para que os homens não se sintam de fora da graça de deus que lhes abençoa diariamente para que sejam o que são.
Enquanto ouvia a música, a questão que me vinha era: Por que nesse mundo, cuidar da vida alheia é ruim? O mundo também é o que é por conta da construção do super sujeito egoísta e centrado no seu mundo, pessoas que não enxergam o outro, que se centram na vida orientados apenas pela realização do eu. Mas eu já vivi muito no interior, entendo exatamente qual é o problema colocado por Geraldo Filme. Na grande Piedade, com todos os seus aproximadamente 70.000 habitantes, sendo a maioria moradores da zona rural, eu costumo dizer que o lema é “Cuide da vida de alguém, porque da sua alguém esta cuidando.” O teor negativo desse “cuidar” vem justamente do fato de que o conceito se realiza na moral. A consciência do cuidar público não existe, como em todos os outros lugares.
Nessa separação criada entre a moral e a vida material, em que uma instância mantém o desarranjo da outra, logo, logo assistiremos, de forma ainda mais acirrada o debate em torno da legalização do aborto. Qual é o argumento para o não? Moral. Qual o argumento para o sim? O direito do indivíduo de realizar seus próprios princípios e possuir respaldo do estado, para que a liberdade não continue sendo um privilégio dos que podem pagar pelo citotec e pelas clínicas clandestinas (e veja bem que o termo clandestino não necessariamente remete ao imaginário do mal feito).
Então a minha grande pergunta é, por que não? O que, dentro dessa lógica, vai interferir na vida daqueles que, pessoalmente, individualmente, por questões morais ou religiosas, são contra? Quando me perguntam se eu faria um aborto, mesmo que assistido dignamente, digo sinceramente que não sei, porque nunca passei pela situação de forma concreta. Mas então por que o defendo? Exatamente porque não posso decidir isso pelo “alheio”, não sei quais são as necessidades desse indivíduo. E que o fato de existir a possibilidade legal e estruturada, definitivamente não me obriga a fazê-lo. Ou seja, cuidemos do que serve para todos, e o que esse todo vai fazer com isso, não me interessa. Dessa forma, me importa a vida alheia no que me cabe, na compaixão e na luta para que tudo seja para todos, na realização efetiva de direitos. Quanto a moral, combato a hegemônica burra porque me afeta, porque todo o resto é agredido por ela. Porque existem alheios e alheios, portanto, entre uma escrota ferida em sua fé cristã diante do direito de outra, e essa outra que só quer resolver uma questão que só lhe diz respeito (o que já não é pouca coisa), a minha próxima, com quem me identifico, obviamente é a segunda. E quanto a primeira, só cuido da moral da vida alheia, se for para que ela não interfira mais da forma negativa como o faz. Afinal, cada um com seus santos, desde que eu e minhas companheiras também possamos rezar pelos nossos....

3 comentários:

Angelamô disse...

Me fez lembrar de uma nova expressão sobre a primeira parte do texto (expressão que virou verbo, em todas as conjugações)
zépovinhar
zepovinhando

E sobre a segunda parte, penso que além de "cuidar" da vida alheia, vem também:
. a velha tutelagem da mulher justificada por sua capacidade de reprodução
. a prevalência de uma vida sobre a outra, que na suposta defesa da vida do porvir, se sacrifica uma vida hoje. Mas é a vida da mulher, tudo bem, né?

Anônimo disse...

E eu que conversava com um cara bem toscão do mal. Quando eu disse que era a favor do aborto, ele logo me perguntou se eu era a favor da pena de morte, portanto.
-Sou sim. Mas só de bebezinhos fofos. rs.

Beijos Cassinha. Hoje é quinta, vamos treinar?

jubs disse...

LineeeÊ!!
eu também tava "conversando" com um cara bem escroto, mas via Folha de S. Paulo... Ele é ginecologista e vai ser Secretário do Ensino Superior... só que ele mandou uma boa: "No meu consultório, nunca entrou uma mulher que engravidou para abortar". Óbvio!! Ou essas senhorinhas da Liga das Católicas acham que vão haver festinhas do aborto todo final do mês, como se abortar fosse que nem vender caqui! Alguém, por acaso, gosta de abortar?? Isso nem é posto... argh!!
Beijocas, meninas.
Saudades...
Cá, tenho notícias do CEOP. Vambebê e proseá?