6.11.06

Quando estranhos personagens adentram a nossa vida

Maria Padilha. A pomba – gira. A puta que se fez Deusa. A vingança daquelas que esquecidas pelo mundo, mercantilizadas, apropriadas por mãos a quem não respondem com amor. Filhas da noite. Ditas perdidas pelo mundo machista que as execram. Ditas achadas por esse mesmo mundo que as procura.
O mundo cria sub-produtos. Crias renegadas que, no entanto, teimam em se manterem presentes e vivas. Teimam em lembrar ao mundo que existem. Teimam em ter voz. Quanto aos caminhos da redenção, não me compete julgar. Cada um vai como dá, faz suas escolhas como pode.
Hoje no banco, circulavam na minha frente sub-produtos não reconhecidos pelo mundo como tal. Moças bem pintadas, atinadas com a moda, ditas bem sucedidas e resolvidas. Aquelas as quais, Maria Padilha não chegaria nem perto. Elas talvez não procurem. Ou procurem da forma como estão acostumadas a lidar com o mundo. Vendendo e comprando. As imagino tentando se aproximar da deusa, por meio de plaquinhas que garantem a volta de seu amor mediante pagamento posterior. E fico imaginando a Maria Padilha, com um ar pedante e sarcástico:
- Para essas daí? Para elas não! Não são moças de casar? Não são dignas aos olhos dos homens? Não querem ser iguais para terem casamentos iguais? Sofrem? Problema delas. Para as minhas putas da noite, tudo. Para essas putas do dia, de carteira assinada, nada.
Eu gostaria que fosse assim. Bati boca com uma delas. A ferocidade com que, como uma leoa, defendia a instituição bancária, seu emprego medíocre, sua vida escondida pela maquiagem barata e mal feita, seus rancores por estar ali, me irritaram profundamente. Perdi o respeito por ela. Por todas as mocinhas que vieram lhe prestar auxílio com a mesma conversa de nós. Como se o Itaú admitisse um nós, além de seus acionistas. Pior que isso, só se ao invés de estar no banco, estivesse em alguma ong do Itaú social com bolachinhas e café. Desprezei a todas tão ferozmente quanto elas, do outro lado, defendiam o banco.
Sai de lá pensando no cara que me roubou. Prefiro ele. Ele foi mais educado. Ele falou manso e não me olhou de cima. Fez o que tinha que fazer. Olhou nos meus olhos. Elas não. Ele defendia o seu lado, elas defendiam o seu lado, defendendo o banco e anulando minha humanidade em nome de agiotas institucionalizados. Ladrão por ladrão, o cara que me assaltou foi mais digno porque não mandou recado. Fez ele. Não pagou mocinhas idiotizadas para fazer o serviço sujo. Fez ele.
Em meio a isso, passei então a pensar no quanto esse mundo pode, em uma virada de segundos, se transformar. Do plano completamente abstrato e virtual em coisa concreta, que se realiza de fato. O que antes era um limite de crédito, simples números, sem lastro correspondente, ou seja, dinheiro que não existia, se materializou ali na minha frente em muitas notas que seguiram para o outro lado do sistema bancário, com o sub-produto desse mesmo mundo fomentado por eles, pelos ladrões oficiais e rotineiros. A cria voltou buscar sua parte. Cobrar o abandono dos prmeiros anos. Exigir o que é seu.

(...) esta sociedade que compra tudo e tudo vende, hipocritamente condena os serviços daqueles que são usados para manter intactos os tabus e manter no alto os códigos de moral dessa mesma sociedade.”

Galeanadas à parte, o fato é que em meio aos sub-produtos: Eu, o ladrão, as moças vestidas de secretárias subservientes e fiéis, entendo mais o suposto algoz do que as leoas do sitema financeiro. Não se trata de discursos bestas fflchianos sobre a relação entre a desigualdade social e a violência e blablabla. Trata-se de identificação com a causas do outro, com o porquê do agir e atuar no mundo daquela forma. Eu tomaria uma cerveja com aquele sujeito, como já devo ter tomado por aí com figuras parecidas. Mas eu não tomaria nem um copo de água com açucar (arght) com aquelas vacas. Sente-se ou não se sente, não é? Pois bem, sinto compaixão e não tenho raiva do figura. Sinto ódio e chutaria aquelas cabecinhas medíocres do banco. Além disso, ele foi o único a tentar me tranquilizar, só ele me garantiu que o banco me ressarciria, com mais segurança do que as funcionárias. E de fato, nada como lidar com profissionais, o banco realmente me pagou o dinheiro. O capital circulou, movimentou a economia de algum lugar e eu fui apenas a mediadora desse processo.
No entanto, não procuro vitimizar ou glorificar a quem a vida e as escolhas colocaram do outro lado do mundo moral – burguês - capitalista. Mas quando penso nele, penso em sua redenção. Torço para que aquele dinheiro, o dinheiro que redime as putas com dor nas ancas e no útero depois de um dia de trabalho, também o redima da vida que leva, que tenha compensado. Como não saberei nunca a que serviu, prefiro pensar nas coisas como eu gostaria que elas fossem. Penso nele como um dos ladrões românticos criados pelo Mano Brow. Com uma corrente de ouro que poderia estar em um Setubal. Pagando cerveja e wisqui para os amigos no Carioca Club. Fazendo um churrasco no campão depois do futebol. O ladrão ligeiro, boa pinta, respeitado, principalmente profissionalmente, pelos seus. Como as putas que gozam. Eu prefiro assim.

“Encarnam a mesma imagem que o sistema forjou delas, para usá-las e depreciá-las; mas aí, atenção: esse auto-retrato é impresso em negativo, porque o objeto de desprezo passa a ser objeto de adoração; a abominação abre caminho para a devoção, e a prostituta decide que é sagrada. Achavam que eu fosse uma cadela? Pois sou uma deusa. Invulnerável:

À meia noite o cemitério se incendiou.
A mulher do diabo não morreu."
Eduardo Galeano - Crônicas Latino-Americanas

5 comentários:

Anônimo disse...

Entendo, Cá, mas cuidado com as cabeças que pretende chutar, sabe, as mocinhas bancárias também amam... e é sério. Lioca.

Cathola disse...

É Lioca, as mocinhas bancárias amam e descontam nas pessoas, toda a frustração de serviçal infeliz. Nós não temos culpa. E pela sua descrição de ontem, talvez, se eu não te amasse em um universo muito distante do mundo empregatício, eu também daria uma leve rosnada para uma certa mesticinha.... beijocas, nega.

disse...

A problemática é uma só: Todos se acham os chefões de alguma instância muito superior. Poder. O ladrão era o dono da tua vida, não era? Ele é alguma bosta tua? não. Mas tinha uma arma na mão. E ninguém recebe uma arma na cara com carinho e ternura. E ninguém aponta sem olhar de cima. Arrogante. A outra moçoila tinha o carimbo e a caneta, e o poder de menosprezar sem te ferir fisicamente. Todos têm alguém por trás e sempre é alguém bem ruim, que pouco merece nossa compaixão. Mas e eles? Não somos nós? Nem piores nem melhores?
Aí eu me defendo um pouco: Nunca apontei arma prá ninguém. Agora eu me ofendo um pouco: Sou covarde.
A "solucinática" deve ser uma só.

Cathola disse...

Hahahaha..... Rá, não rolou um amor com o bandido... agora eu me defendo. Todas essas questões sobre a institucionalização das reações de poder e o respeito pelo cara que me roubou dizendo para que eu ficasse calma porque o banco iria me pagar, são obviamente posteriores...ou senão eu poderia ter naquele instante, ter saído correndo, seguindo seus passos e pedindo:
-Me leva com você......
Beijocas...

Cathola disse...

ops, ali emcima é relações e não reações....beijocas